
Neste Dia das Mães, o g1 relembra as histórias de Francilene Gomes, Evanira da Silva, Maria das Graças e Cecília Lopes, que tiveram filhos mortos em ações da Polícia Militar de São Paulo. 1 de 7 Mães de jovens mortos pela polícia morrem à espera de uma resposta– Foto: Arquivo pessoal
Mães de jovens mortos pela polícia morrem à espera de uma resposta– Imagem: Arquivo pessoal
Quatro mulheres que transformaram o sofrimento em luta contra a violência policial morreram sem ver a justiça feita para seus filhos assassinados por policiais das Forças Armadas no Estado de São Paulo.
Neste domingo (11), dia em que se comemora o Dia das Mães, o g1 relembra as histórias de Francilene Gomes, Evanira da Silva, Maria das Graças e Cecília Lopes, que se tornaram ícones de resistência e força.
Unidas pela desgraça, lutaram pela memória e pela justiça: Francilene pelos mortos nos Crimes de 2006; Evanira e Maria pelas vítimas da carnificina de Paraisópolis; e Cecília, que viu seu filho falecer após ser espancado por policiais em Sorocaba.
As mortes dessas lideranças revelam uma ferida aberta: a dor de mães que lidam até o fim sem nenhuma reação das instituições.
Um estudo da FGV Direito SP, divulgado pelo g1, revelou que nenhum policial envolvido nas 946 mortes decorrentes de intervenção policial no estado de São Paulo, entre 2018 e 2024, foi reportado pelo Ministério Público. Os dados revelam um cenário de imunidade consistente. (Saiba Mais.)
Em nota,A Secretaria de Segurança Pública de SP afirmou que “as forças de segurança estaduais são instituições judiciárias e não desculpam indesejáveis ou má conduta de seus representantes”, e que, desde 2023, mais de 550 policiais foram presos e 364 foram demitidos ou expulsos da força (veja a matéria completa abaixo).
Evanira da Silva 2 de 7 Evanira com seu filho Eduardo e neto – Foto: Arquivo pessoal
Evanira com seu filho Eduardo e neto – Imagem: Arquivo pessoal
Em 1º de dezembro de 2019, a vida de Evanira da Silva foi abalada. Ela perdeu seu filho mais novo, Eduardo, de 21 anos, durante o episódio que ficou conhecido como a carnificina de Paraisópolis.
Naquele dia, mais de 5 mil pessoas participavam do baile da DZ7, na Zona Sul de São Paulo, quando a Polícia Militar flagrou os jovens em um beco sem saída, jogando bombas de gás lacrimogêneo. Nove jovens morreram e 12 ficaram feridos. Na ocasião, os policiais declararam que estavam perseguindo dois suspeitos de roubo que estavam em uma moto, mas nunca foram encontrados. Em sua defesa, eles também mencionaram que as vítimas morreram acidentalmente após serem pisoteadas. Doze policiais ainda estão soltos pelos homicídios. Evanira morreu aos 57 anos em 29 de abril sem que os policiais fossem condenados. Mesmo mais de cinco anos após o massacre, os policiais ainda não foram julgados, pois o caso ainda está em fase de instrução. “Ela se apegou a esse sofrimento, não conseguia ver justiça pela vida do meu irmão”, afirma Graziele dos Santos, filha de Evanira. Graziele contou ao G1 que sua mãe nunca mais foi a mesma após a morte do filho mais novo.que deixou para trás um filho de três anos. A dor da perda foi acompanhada por uma sensação de imunidade que, segundo Graziele, consumiu Evanira. “Ela dizia constantemente que não haveria paz até que eles fossem julgados, até que fossem condenados.”
Cinco anos após o ‘Massacre de Paraisópolis’, PMs acusados ainda não foram interrogados.
Junto com a dor, veio a preocupação. Após a tragédia, Evanira passou a viver em pânico sempre que via uma viatura da Polícia Militar. A presença dos policiais foi um dos gatilhos para a morte violenta do filho.
“Minha mãe era uma pessoa muito gentil, mas quando se tratava da polícia, ela ficava muito preocupada. […] Na época [após o massacre], tinha um policial que veio trazer um papel para ela comparecer a uma delegacia em São Paulo. Ela ficou apavorada porque achou que ele tinha vindo para matá-la”, lembra Graziele.
A família obteve do governo estadual, por intermédio da Defensoria Pública, o pagamento pela morte de Eduardo. O valor permitiu que conseguissem uma residência em Carapicuíba, na Grande São Paulo, para a Sra. Evanira.
“Eles achavam que estavam nos comprando com dinheiro, mas a vida de uma pessoa tem valor”, afirma Graziele.
“Ela conseguiu uma casa muito boa, um lar amplo. No entanto, minha mãe disse que preferia ficar na casa antiga com o filho vivo do que morar na nova sem meu filho. Ela afirmou que vivia sem paz, sufocada e miserável. ‘Por que ter uma casa tão grande, se não tenho meu filho lá embaixo ao meu lado?’, ela se perguntava.”
Apesar do desconforto que carregava, Evanira tornou-se um modelo de acolhimento. Referida como uma mulher caridosa e guerreira,Ela transformou sua própria casa em um refúgio para familiares e vizinhos.
“A casa da minha mãe ficava lotada todo fim de semana. Minhas tias, meus parentes, meus parentes, todo mundo se reunia para tomar café com ela”, lembra Graziele. Mais do que uma irmã, Evanira era considerada a mãe de todos. “Ela sempre tentava ajudar as pessoas, até com roupas e comida. Se ela soubesse de alguém que realmente não tivesse nada, ela ia atrás.”
Agora, sem ela, a família tenta manter viva a memória da mulher que, até o último suspiro, lutou para que o nome do filho Eduardo não fosse esquecido e para que a justiça finalmente chegasse um dia.
Maria das Graças 3 de 7Maria das Graças com seu filho mais novo, Bruno — Foto: Arquivo pessoal
Maria das Graças com seu filho mais novo, Bruno — Imagem: Arquivo pessoal
A advogada Maria das Graças Reis da Silva também perdeu seu filho mais novo, Bruno Gabriel, durante o massacre de Paraisópolis. Ele estava comemorando seu aniversário em um baile funk quando foi morto.
Aos 70 anos, Maria das Graças morreu de câncer na garganta em março do ano passado. Segundo sua filha, Vanine Siqueira, a doença foi agravada pelo sofrimento e pela dor da perda do filho.
Durante anos, Maria das Graças manteve um ritual: toda segunda-feira, ela ia ao cemitério para visitar o túmulo do filho, levando brinquedos e bolos, como se ele ainda fosse criança. “Nos últimos meses, ela não teve mais forças para ir, mas até o fim guardou uma sacolinha com presentes para ele”, afirmou Vanine.
A perda de seu irmão e de sua mãe, um por um, destruiu os membros da família. “Eles realmente não acabaram apenas com a vida do meu irmão,Eles danificaram uma casa inteira.” Segundo Vanine, a demora no julgamento do policial responsável aumenta a sensação de injustiça e impunidade. “Minha mãe faleceu sem ver nada sendo feito. Eles continuam recebendo seus rendimentos, vivendo suas vidas, enquanto a nossa foi completamente destruída”, afirmou.
Apesar do desconforto, a advogada nunca generalizou suas críticas à polícia, apesar de vir de uma família ligada às pressões de segurança. “Minha mãe costumava dizer que em todas as profissões existem profissionais bons e ruins. O que ela queria era justiça para aqueles que cometeram crimes”, lembrou Vanine.
Para ela, a morte da mãe representa mais um exemplo da imunidade que cerca os casos de violência policial no país. “Toda mãe que perde um filho também perde um pouco de si mesma. E até que haja justiça, essa dor só aumenta. Minha mãe carregou essa dor e essa dor. E, infelizmente, várias outras Marias continuam a falecer sem que a justiça seja cumprida.”
Como tradição, Maria das Graças sempre incentivou seus filhos a estudar e a espalhar o amor. “Ela costumava dizer: ‘Deus é justo e ninguém sai desta vida sem pagar pelo que fez'”, lembrou sua filha. E até que a justiça oficial chegue, Vanine garante que continuará lutando em nome de sua mãe e seu irmão. “Enquanto eu viver, vou clamar por justiça. Não permitirei que a situação de Bruno seja negligenciada.”
Cecília Lopes 4 de 7 Cecília– Foto: Arquivo pessoal
Cecília– Imagem: Arquivo pessoal
Cecília Lopes é mais uma mãe cuja vida foi marcada pelo sofrimento de perder seu filho para a violência policial.Ela morreu no dia 28 de abril sem ver justiça feita e deixou a ONG Lucas Vive, em homenagem ao filho.
Na madrugada de 1º de janeiro de 2019, Lucas Lopes foi morto após ser espancado em Sorocaba, no interior de São Paulo. O esteticista de 23 anos voltava de um baile funk quando foi perseguido por policiais que faziam patrulha para impedir pancadões.
Naquele dia, Cecília foi alertada sobre a agressão e foi até o bar, flagrando um policial dando um chute em Lucas. “Se você der mais um passo, eu mato esse lixo”, disse o policial enquanto colocava o pé no peito do menino.
Depois de seis anos, apenas um policial foi acusado de homicídio e aguarda julgamento em liberdade.
O irmão de Lucas, Israel Lopes de Azevedo, disse ao G1 que a perda do jovem teve um impacto devastador em sua mãe. “A morte do meu irmão basicamente arruinou minha mãe, ela perdeu a vontade de continuar vivendo”, afirmou.
5 de 7 Cecília e seu filho Lucas — Imagem: Arquivo pessoal
Cecília e seu filho Lucas — Imagem: Arquivo pessoal
Segundo Israel, após a morte de Lucas, muitas pessoas procuraram Cecília para contar sobre o auxílio que o filho oferecia — mesmo com poucos recursos —, o que lhe deu um novo propósito.
“Minha mãe começou a abraçar algumas pessoas e a ajudar no que podia, ela começou a apoiar mães que passavam pela mesma perda e dor que ela”, disse ela. E assim nasceu a ideia de transformar o auxílio em uma organização formal. A ONG Lucas Vive foi criada para “celebrar a memória de Lucas, transformar toda a dor em auxílio e amor”.
Para Israel, a demora no julgamento e a impunidade do caso aumentam as dúvidas sobre o sistema judiciário do país.”Aqueles que deveriam nos proteger nos tornam alvos e continuam impunes diante de toda a criminalidade e crueldade”.
Segundo ele, a cada dia sem solução, a dor era restaurada para Cecília. “Toda mãe que perde um filho, perde um pedaço de si. A demora em ver a justiça ser feita não traz a criança de volta, mas representa um pedaço de tranquilidade e esperança de que ainda haja justiça”.
Francilene Gomes 6 de 7 Francilene Gomes era– Foto: Arquivo pessoal
Francilene Gomes era– Imagem: Arquivo pessoal
Francilene Gomes Fernandes — mais conhecida apaixonadamente como Fran — teve seu irmão Paulo Alexandre Gomes, de 23 anos, morto durante os Crimes de Maio em 2006. Sua irmã Juliana Gomes Fernandes, de apenas 17 anos, também foi vítima de violência governamental no final da década de 1990. Fran morreu aos 44 anos em setembro de 2015, após perder a luta contra o câncer de tireoide e sem ver justiça para seus irmãos. Ela também deixou três filhos: Júlia, de 22 anos, Sofia, de 12, e Noah, de 5. O episódio dos Crimes de Maio foi uma das maiores ondas de violência da história de São Paulo. O problema começou quando o Primeiro Comando da Polícia (PCC) organizou ataques contra as forças de segurança em troca da transferência de líderes para presídios de segurança máxima. Em ação, as Autoridades Militar e Civil implementaram uma forte repressão na periferia da Grande São Paulo e no litoral. No total, mais de 500 cidadãos foram mortos em apenas uma semana, muitos deles jovens, negros e pessoas de má índole da periferia da cidade — Paulo sendo apenas uma das vítimas. No caso de Paulo, quase duas décadas após o crime, seu corpo nunca foi localizado.Assim, a família nunca pôde se despedir do menino. Como Fran frequentemente lamentava, ela não tinha onde deixar uma vela acesa ou um porta-flores. Apesar de ter perdido os irmãos, Fran aderiu ao movimento Mães de Maio, sentiu durante toda a vida como se tivesse perdido os próprios filhos e se tornou a coluna vertebral da família, uma mãe para todos. Doutora em Serviço Social, cientista e professora universitária, tornou-se referência no combate à violência do Estado e na defesa das liberdades civis humanas. “Não vou descansar enquanto não tirar a roupa dessa assassina que matou meu filho”, disse Fran. Dona do movimento Mães de Maio, Débora Silva afirma ter adotado Fran como filha e a ajudado a lidar com a depressão e a transformar sua dor em luta. Com o passar dos anos, a assistente social passou a frequentar o grupo e a representar as Mães de Maio em palestras e eventos.
Fran também adotou as camisetas vermelhas com o logotipo das Mães de Maio como um tipo de vestimenta. “Era um dos seus maiores trunfos. [A camiseta] é o nosso escudo e bandeira, e ela usava a camisa”, diz Debora.
Em 2014, a pesquisadora também lançou “Tecendo resistências — trincheiras conversam a violência policial”, que discute a violência policial em São Paulo, responsável pela morte de dezenas de jovens negros, indígenas e marginalizados.
O legado que ela nos deixou é a resistência, a superação de fronteiras, a busca pela família, a união, a mudança para um mundo melhor possível e a união com as Mães de Maio. Ela foi criando essa tradição, pois nasceu com essa herança. — Debora Silva,fundadora das Mamães de Maio
Para Debora, o Estado também falha na falta de apoio, principalmente emocional, às mulheres que vivenciam o luto de seus filhos, irmãos e pais — vítimas da violência policial.
“Fala-se muito sobre a porcentagem de meninos negros mortos, mas onde estão essas mães negras? Se o menino é negro, a mãe é negra. Onde estão essas mães que ninguém olha depois do luto? E estamos constantemente exigindo, as mães estão morrendo”, diz Debora.
7 de 7 Francilene era assistente social e pesquisadora — Foto: Reprodução/Redes sociais
Francilene era assistente social e pesquisadora — Foto: Reprodução/Redes sociais
O que a SSP afirma
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) afirmou:
“As forças de segurança do Estado são instituições legalistas e não toleram atos indesejados ou má conduta de seus agentes. As empresas promovem treinamentos constantes e contam com conselhos especializados para aprimorar os atendimentos. Por ordem da SSP, todos os casos de morte decorrentes de tratamento policial (MDIP) são rigorosamente apurados pelas Corregedorias, com fiscalização do Distrito Público. Escritório de Advocacia e o Poder Judiciário. Os casos, após apurados, foram reportados ao Tribunal. Desde 2023, mais de 550 agentes da lei foram presos e 364 foram demitidos ou expulsos dos escritórios.