
Estagiários postaram um vídeo no TikTok contando a história de uma pessoa que passou por uma cirurgia no InCor, em SP. Eles afirmaram que um dos transplantes não teve sucesso, pois a pessoa, que faleceu em fevereiro, não havia tomado os medicamentos corretamente, o que a família nega.
Alunos de clínica são denunciados por exporem a situação de uma jovem transplantada e ridicularizá-la
Os familiares de Vitória Chaves da Silva, menina que passou por três transplantes de coração no Instituto do Coração (InCor), entraram com uma ação judicial em São Paulo e pediram R$ 607 mil de indenização por problemas éticos em uma ação judicial contra o próprio centro de saúde, a empresa Inspirali Educação e as estudantes de medicina Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeiras Soares Foffano.
Sem citar nomes, Gabrielli e Thaís publicaram um vídeo no TikTok em que falam sobre os tratamentos aos quais Vitória se submeteu. Eles alegam que um deles não teve sucesso porque a pessoa não havia tomado os medicamentos corretamente e, paradoxalmente, comentaram que ela tinha “sete vidas”.
A família alega que o vídeo, gravado dentro do InCor, mencionou o caso de Vitória de forma “grosseira, maliciosa, debochada e infantil”. A menina faleceu em fevereiro deste ano após lutar contra um problema cardíaco genético.
Na ação, a família menciona que essa é a situação de Vitória porque ela é a única pessoa em tratamento no InCor com o histórico de transplantes apontado no vídeo.
Em um dos trechos da gravação, Gabrielli afirma que o segundo transplante parou de funcionar porque a cliente “não tomou os medicamentos que deveria tomar”. Thaís então diz: “Essa menina acha que tem 7 vidas”.
Os familiares contestam a informação de que Vitória não tomou seus remédios. De acordo com a petição inicial, a jovem era “extremamente cuidadosa” com o horário e a dosagem de seus medicamentos, gerenciando-os por meio de alarmes em seu celular, apesar de estar “acompanhada por uma equipe de ponta”.
De acordo com a ação, os alunos foram internados com um curso de extensão de um mês oferecido pela Inspirali, dentro do InCor. Os familiares alegam que tiveram acesso a informações sobre o histórico de saúde de Vitória e as divulgaram ilegalmente. A Inspirali é acusada de ser responsável pela apresentação dos alunos e pela ausência de assistência e supervisão. O InCor é incluído na ação por não ter monitorado.
A defesa dos familiares alega que o vídeo violou o sigilo médico e a privacidade pessoal de Vitória.
“Os alunos precisam ser responsabilizados pelo tom bufão e pelo sarcasmo indevido com que transmitiram tais detalhes, […] demonstrando um sadismo incompatível com a nobreza do exercício da medicina”, especifica um trecho da ação.
O G1 procurou a defesa dos alunos e conversou com o InCor, mas não obteve resposta até a última atualização desta reportagem.
A Inspirali Educação não quis se manifestar sobre o pedido.
Além da indenização por problemas éticos, a família pede auxílio financeiro para custear tratamento psicológico no valor de R$ 25,5 mil pelo prazo de 6 meses.
Na noite desta segunda-feira (5), a irmã de Vitória se pronunciou sobre o pedido nas redes sociais. “Nunca foi e continua não sendo sobre dinheiro. Lutamos e continuaremos lutando para remover a história da minha irmã,que foi e sempre será uma história de muita luta e superação”, escreveu Giovana (foto abaixo).
1 de 4 Irmã de Vitória fala sobre o caso– Foto: Reprodução
Irmã de Vitória fala sobre o caso– Foto: Recreação
Alunos foram ouvidos pela polícia
Os dois médicos residentes que foram denunciados pelos familiares da jovem Vitória Chaves da Silva foram ouvidos no 14º Distrito Policial no dia 14 de abril e destacaram que “não tiveram a intenção de aborrecer Vitória, mas sim de denunciar o caso”.
A família de Vitória então pediu retratação e, após o registro do caso na delegacia, a Polícia Civil abriu inquérito por calúnia.
Ao g1, o delegado Marco Antonio Bernardo afirmou que a mãe de Vitória e as duas alunas prestaram depoimento. O inquérito foi denunciado posteriormente e cabe ao juiz analisá-lo, que deverá remetê-lo ao Ministério Público.
“Após isso, o caso aguarda a declaração de crime pelo advogado da vítima”, afirmou. O delegado esclareceu que, em caso de crime contra a pessoa, a parte ofendida precisa apresentar queixa-crime para que o processo seja iniciado. Isso ocorre em casos de calúnia, difamação, desrespeito ou violação de direitos autorais. “O inquérito policial não é encaminhado ao Ministério Público para avaliar se deve ou não apresentar queixa, como nos casos de ação penal pública. Quando se trata de ação penal privada, em uma queixa por injúria, a vítima apresenta uma queixa, inicia um inquérito, e o advogado da vítima é quem apresenta a queixa-crime contra a pessoa para dar continuidade ao processo no Judiciário.”, enfatizou.
Thaís Caldeiras Soares e Gabrielli Farias de Souza disseram em um vídeo gravado para o G1 que sua intenção não era expor o caso da cliente e que lamentavam profundamente a morte de Vitória (veja o vídeo abaixo).
“Estamos vindo a público para informar à família que lamentamos profundamente a perda e deixar claro que a intenção do vídeo nunca foi expor o caso. O único propósito do vídeo era mostrar o choque diante de um caso muito raro que vivenciamos em um ambiente de técnica e ensino médico”, disseram.
E acrescentaram: “Além disso, é muito importante ressaltar que não tivemos acesso à cliente, ao seu prontuário médico, nem divulgamos nenhuma imagem relacionada a ela. Nem mesmo sabemos seu nome completo. Todas as ações adequadas estão sendo tomadas para garantir que todas as verdades sejam esclarecidas da maneira mais eficaz possível.”
Alunos clínicos alegam que o propósito de um videoclipe sobre uma pessoa transplantada não era expor
O que os alunos declararam
“Devido à repercussão produzida por um videoclipe divulgado em um ambiente pessoal, nós, residentes clínicos discutidos nos relatórios atuais, nos apresentamos para fornecer algumas explicações, com respeito, compaixão e responsabilidade.
O conteúdo divulgado teve o único objetivo de revelar surpresa devido a uma situação científica apontada no cenário de estágio.
A circunstância descrita, devido à sua raridade, despertou nosso interesse acadêmico e causou uma representação espontânea sobre facetas tecnológicas que nunca havíamos estudado ou observado.
É necessário deixar claro que não tivemos contato com a pessoa, não acessamos seus registros médicos, não discutimos seu nome,Não captamos nem divulgamos nenhum tipo de imagem, ou seja, nem a reconhecemos. Também não temos como verificar se as imagens que começaram a circular nas redes sociais são, de fato, da paciente mencionada nas notícias. Lamentamos profundamente que o vídeo — gravado sem nenhuma informação que permitisse a identificação — tenha sido analisado de forma divergente de nossa real intenção, associando-o a uma pessoa específica. Reafirmamos que não houve qualquer desrespeito ou desconhecimento. Nosso compromisso com a vida, a dignidade humana e os princípios éticos da Medicina permanece inabalável. Lamentamos também que, por motivos alheios à nossa finalidade, alguns setores tenham divulgado trechos isolados do vídeo, fora de contexto, o que contribuiu para distorções na interpretação do material. Expressamos nossa solidariedade aos familiares da pessoa citada nestas notícias, a quem verdadeiramente respeitamos, e reafirmamos que jamais tivemos a intenção de causar incômodo, expor ou causar sofrimento. Estamos tomando as medidas adequadas para esclarecer as verdades e manter nossa estabilidade pessoal, acadêmica e psicológica. Agradecemos às pessoas que nos ouviram com respeito e compreensão neste momento difícil, que também foi um momento de profundo aprendizado. O que a FMUSP disse: Abaixo, revisamos a declaração completa da FMUSP em apoio ao InCor: A FMUSP esclarece que os estagiários envolvidos no incidente são alunos de graduação de outras instituições, que estavam internados devido a um curso de extensão temporária (um mês). Atualmente, eles não possuem nenhum tipo de vínculo acadêmico com a FMUSP ou o InCor.
Assim que a verdade foi revelada, as escolas de origem dos alunos foram alertadas para garantir que possam tomar as medidas adequadas.
Internamente, a FMUSP está tomando medidas adicionais para fortalecer as diretrizes formais sobre conduta ética e uso responsável das redes sociais para os participantes dos programas de expansão, além de autorizar um termo de compromisso com os princípios de respeito aos pacientes e aos valores que regem as atividades da instituição.
A FMUSP repudia veementemente qualquer tipo de desrespeito aos clientes e declara seu compromisso inegociável com os princípios, a dignidade humana e os valores que norteiam a boa prática médica.
A organização também reforça seu objetivo de formar profissionais comprometidos com a excelência e o atendimento humano, valores inegociáveis em nossa instituição.”
O que os professores afirmaram
Gabrielli Farias de Souza é doutoranda em medicina na Faculdade Anhembi Morumbi, em São Paulo, e Thaís Caldeiras Soares Foffano é doutoranda em medicina na Faculdade de Saúde e Ecologia Humana (Faseh), em Vespasiano, na região metropolitana de Belo Horizonte (MG).
As universidades enviaram a mesma nota ao g1. Nela, lamentaram o ocorrido e afirmaram se solidarizar com a família de Vitória.
“A faculdade lamenta profundamente o ocorrido e se compadece da família da paciente, ressaltando que, tão logo tomou conhecimento do ocorrido, adotou as medidas cabíveis com a máxima urgência para uma apuração aprofundada do caso, respeitando as normas estabelecidas em suas normas internas”, afirmaram.
E ressaltaram: “A instituição reforça sua unidade e reafirma seu compromisso em acompanhar o caso e seus desdobramentos, colocando-se à disposição das autoridades para qualquer tipo de pagamento visando à apuração dos fatos”.
Luta de Vitória 2 de 4 Vitória Chaves da Silva quando realizou seu 2º transplante no Incor, em São Paulo– Foto: Reprodução/Profissão Press Reporter
Vitória Chaves da Silva quando realizou seu 2º transplante no Incor, em São Paulo– Foto: Reprodução/Profissão Press Reporter
Vitória nasceu em Luziânia (GO) e foi diagnosticada com um grave problema cardíaco genético chamado Anomalia de Ebstein, uma doença rara que afeta o coração. Os médicos lhe deram 15 dias de vida.
Após inúmeras cirurgias e complicações, aos 4 anos de idade, ela foi para São Paulo, onde sofreu um infarto durante um cateterismo. Foi então que ela foi diagnosticada com a necessidade de um transplante de coração. Após 1 ano e 4 meses na lista de espera, ela fez seu primeiro transplante em 2005, no Incor, quando tinha apenas 5 anos.
Dez anos depois, a jovem teve novamente complicações, o que exigiu um novo transplante em 2016, já que seu coração estava operando a apenas 3%. O Profissão Repórter mostrou o caso dela na época (veja o vídeo abaixo).
3 de 4 O primeiro transplante de Vitória Chaves foi aos 5 anos de idade– Imagem: Reprodução/Profissão Repórter
O primeiro transplante de Vitória Chaves foi aos 5 anos de idade– Foto: Reprodução/Profissão Repórter
Em 2019, Vitória começou a lutar contra uma rejeição grave do órgão e foi internada em um posto de saúde da Região Federal. No entanto,Ela recebeu alta médica e foi de ambulância para fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Ela contou ao G1 que seu desejo era ser médica.
“Só de poder fazer a prova já é uma conquista. Estou confiante, já deu certo. Quero deixar de ser pessoa física e começar a prestar atendimento, me especializar em cardiologia pediátrica e retribuir tudo o que os médicos me deram”, disse ela na época. 4 de 4 Vitória Chaves da Silva, 20 anos, foi de ambulância para fazer prova na Região Federal — Imagem: Wellington Hanna/TV Globo
Vitória Chaves da Silva, 20 anos, foi de ambulância para fazer prova na Região Federal — Foto: Wellington Hanna/TV Globo
Em 2023, a menina precisou passar por um transplante de rim e voltou à fila para um novo coração. Ela fez seu terceiro transplante em 2024. Em fevereiro deste ano, Vitória faleceu devido a insuficiência renal crônica e choque séptico. Ela permaneceu internada na UTI do Incor por um ano e nove meses. Jovens relatam mudanças na rotina após transplante cardíaco. Caso Vitória: Polícia abre inquérito contra estagiários clínicos por difamação.